Com frequência, se diz que a expressão “livros deuterocanônicos” foi criada pelos Pais do Concílio de Trento (1545-1563). Isso não é correto. Mas é verdade que a expressão foi usada pela primeira vez por um teólogo conectado com aquele concílio, Sixto de Siena (1520-1569) em seu De divinis nominibus bibliothecae sanctae publicado em 1566.1 Sixto foi um judeu convertido ao Cristianismo. Ele se tornou franciscano, depois dominicano. No início de seu livro, ele faz a pergunta: “quais são as Escrituras e os autores canônicos e apócrifos” (canonicae et apocryphae scripturae et scriptores quid sint). Em sua resposta, ele faz uma distinção entre três categorias de livros:
- os livros canônicos de primeira ordem, que ele chama de “protocanônicos” (canonici primi ordinis, quos protocanonicos appellare libet);
- os livros canônicos de segunda ordem, em outras palavras “deuterocanônicos” (canonici secondi ordinis, qui olim ecclesiastici vocabantur et nunc a nobis deuterocanonici dicuntur);
- e os livros “apócrifos", “apocryphae”, cujo significado é de dois tipos, “duobus modis”: primeiro, há os livros canônicos cujos autores são incertos; em segundo lugar, há os livros cuja autoridade é incerta, tais como 3-4 Esdras, 3-4 Macabeus, e outros; eles não podem ser usados no campo dogmático nem para a edificação pública, mas são reservados para a leitura privada, em casa, “privatim et domi”.
De acordo com Sixto, a autoridade dos livros protocanônicos nunca foi discutida na Igreja Católica e eles sempre foram usados de maneira autoritativa em problemas dogmáticos; ele não lista esses livros, exceto os cinco livros de Moisés e os quatro evangelhos. Ele dá muito mais detalhes a respeito dos livros deuterocanônicos: no Antigo Testamento, são estes: Ester, Tobias, Judite, Baruc, a Carta de Jeremias, Sabedoria de Salomão, Ben Sirá, Oração de Azarias, o Cântico dos Três Jovens, Susana, Bel, 1-2 Macabeus; de acordo com ele, estes livros não foram reconhecidos durante a era apostólica por toda a Igreja; eles eram lidos pelos catecúmenos no tempo de Atanásio, então foram usados para a edificação pública, como diz Rufino.2
Sixto inova. Antes dele, nos decretos conciliares, os livros que ele chama de protocanônicos e deuterocanônicos estavam misturados. Por exemplo, o cânon 36 do Concílio de Cartago (397 AD) fala sobre os livros de Salomão, que podem ser três, quatro ou cinco de acordo com as leituras variantes dos manuscritos. Estes livros são citados entre o Saltério e os Doze Profetas. Se há apenas três, estes são necessariamente Provérbios, Eclesiastes e Cântico dos Cânticos, que são livros canônicos; mas, se são quatro, Sabedoria, um livro deuterocanônico, está incluído; se são cinco, Sabedoria e provavelmente Ben Sirá, ambos deuterocanônicos, estão incluídos. Na mesma lista, Tobias e Judite são citados entre Daniel e Ester. No entanto, a lista termina com 1-2 Macabeus.3 Muito mais tarde, em 1442, um dos decretos do Concílio de Florença, a Bulla unionis coptorum, Tobias e Judite entre Neemias e Ester; Sabedoria e Ben Sirá entre Cântico dos Cânticos e Isaías; Baruc entre Jeremias e Ezequiel.4 Em 1546, o Concílio de Trento dá a mesma lista.5
Antes da palavra “deuterocanônico”, havia alguma outra para dizer a mesma coisa? O texto de Sixto fornece uma indicação interessante: o teólogo diz que os livros da segunda ordem “eram chamados no passado de eclesiásticos, ecclesiastici, e chamados por nós de deuterocanônicos”. Quem, no passado, falou sobre os livros eclesiásticos? Nos dias do Concílio de Trento, dois teólogos, o dominicano Pietro Bertano e o agostiniano Girolano Seripando, sugeriram que é necessário distinguir duas categorias de livros. Primeiro, aqueles autênticos e canônicos, dos quais depende nossa fé (authentici et canonici et a quibus fides nostra dependeat); em segundo lugar, os livros meramente canônicos, que são adequados para ensinar e úteis para a leitura nas igrejas (canonici tantum quique ad docendum idonei et ad legendum in ecclesiis utiles sunt).6 Certamente, aqui, a palavra “eclesiástico” não está presente. Mas, em seu tratado De libris sacrae scripturae (1546), o mesmo Girolamo Seripando faz uma distinção entre os livros canônicos e autênticos, cuja autoridade é capaz de confirmar os dogmas eclesiásticos (canonici et authentici […] quorum auctoritas valeat ad confirmanda dogmatica ecclesiastica), e os livros canônicos e eclesiásticos, que podem ser lidos para a edificação, mas não são autênticos, isto é, não são suficientes para confirmar os dogmas eclesiásticos, (canonici et ecclesiastici […] legendi scilicet ad aedificationem plebes, non autem […] authentici, hoc est tanquam sufficientes per se ad confirmanda dogmata ecclesiastica).7 À segunda categoria pertencem Tobias, Judite, Sabedoria, Ben Sirá, Macabeus, 3-4 Esdras, Baruc. Para estabelecer esse ponto, Girolamo Seripando cita autoridades patrísticas, sobretudo o Prologus in libris Salomonis de Jerônimo. De fato, nesse texto, falando sobre Ben Sirá e Sabedoria, o pai latino explica que
a Igreja lê Judite, Tobias e Macabeus, mas não os recebe entre as Escrituras canônicas; da mesma forma, a Igreja deve ler estes dois livros para a edificação pública, mas não para confirmar a autoridade dos dogmas eclesiásticos (sicut ergo Iudith et Tobi et Machabearum libros legit quidem ecclesia, sed inter canonicas scripturas non recipit, sic et haec duo volumina legat ad aedificationem plebes, non ad auctoritatem ecclesiasticorum dogmatum confirmandam).8
Sixto se refere a Girolamo Seripando e, antes dele, a Jerônimo? Em seu texto, ele cita apenas Rufino e sua Expositio symboli, em que faz uma distinção entre livros canônicos (canonici) e livros eclesiásticos (ecclesiastici, § 36).9 Estes são: Sabedoria, Ben Sirá, Tobias, Judite, Macabeus. De acordo com ele, as igrejas concordam que todos esses livros devem ser lidos, mas não podem ser indicados para confirmar a autoridade da fé (quae omnia legi quidem in ecclesiis voluerunt, non tamen proferri ad auctoritatem ex his fidei confirmandam). No entanto, essa ideia está intimamente relacionada à proposta de Jerônimo. Pode-se até se perguntar se Sixto não está se referindo a Jerônimo mais que a Rufino, quando ele faz uma distinção entre a confirmação dos dogmas e a instrução do povo (dogmatum confirmation […] populi instructio). Estas palavras estão bem perto da distinção feita por Jerônimo em seu Prologus in libris Salomonis entre a confirmação da autoridade de dogmas eclesiásticos (auctoritas ecclesiasticorum dogmatum confirmanda) e a edificação pública (aedificatio plebes).
Contudo, um ponto deve ser sublinhado: Rufino sustenta que os livros da segunda categoria “não têm sido chamados pelos anciãos de canônicos, mas de eclesiásticos” (non canonici, sed ecclesiastici a maioribus appellati sunt). As palavras “livros eclesiásticos” são atestadas antes de Rufino? Infelizmente, elas não ocorrem em nenhum texto, nem em latim nem em grego. Isso não significa que Rufino seja um mentiroso, mas apenas que há grandes lacunas em nosso conhecimento de dados antigos. Então, é possível voltar no tempo antes de Rufino? Em sua Carta a Africano, Orígenes recorda a Africano que a história de Susana está “em circulação em toda a Igreja de Cristo” (φερόμενα ἐν πάση ἐκκλησίᾳ Χριστοῦ), bem como Bel e o Dragão (§ 3). Ele fala também a respeito dos manuscritos cristãos que, disponibilizando o Cântico dos Três Jovens, estão “em circulação nas igrejas” (φερόμενα ἐν ταῖς ἐκκλησίαις, § 4), a respeito das adições gregas de Ester (§ 5), a respeito do final de Jó (§ 6) e a respeito de Tobias e Judite, que, ao contrário das igrejas, os judeus não utilizam (§ 19). Orígenes pensa que é impossível mudar os manuscritos e os textos que “estão em circulação nas igrejas” (τα ἐν ταῖς ἐκκλησίαις φερόμενα, § 8, 17).10 Certamente, a palavra grega ecclesiastikos não ocorre na Carta de Orígenes, mas a ideia está presente.
Contudo, uma coisa é certa: a expressão “livros eclesiásticos” é cristã, não judaica. Mas todos os livros “eclesiásticos” são judaicos. Alguns deles são traduzidos do hebraico, tais como 1 Macabeus, Ben Sirá, Judite e algumas passagens de Tobias; outros da língua aramaica, tais como a maior parte de Tobias e o início de 2 Macabeus; outros foram escritos em grego, tais como Sabedoria, a maior parte de 2 Macabeus e 3-4 Macabeus.11 Portanto, há um contraste, talvez uma contradição entre o termo cristão e a origem judaica. É possível explicar esse contraste? Aqui, os dados patrísticos e rabínicos têm que ser levados em conta.